Um guia para a Entrada na Correnteza

Este texto oferece uma exposição acerca do modo de encarar um retiro de meditação com o objetivo de alcançar o primeiro nível do despertar, conhecido como A Entrada na Correnteza (o primeiro caminho). Para entender o conteúdo apresentado é importante ter uma noção dos estágios da meditação do insight (os vipassana-ñanas) e manter uma postura pragmática com relação ao processo de despertar. O texto deve ser lido como uma orientação prática e como um apêndice ao restante do material contido no livro Mastering the Core Teachings of the Buddha de Daniel Ingram.

As funções primárias do texto são: 1. expor como alguém, disposto a dar tudo o que tem e trabalhar duro, pode alcançar a entrada na correnteza através da prática de meditação Vipassana; e como, se tu fores essa pessoa, isso significa que também podes fazer isso; 2. oferecer conselhos para quem está tentando, mas ainda não conseguiu.

Segundo tive notícia até hoje, a maior parte das pessoas alcança o primeiro nível do despertar em intensos retiros de prática. Este primeiro nível é conhecido por ser particularmente escorregadio e por exigir que a mente e todo o campo de experiência faça algo que nunca fez antes: desaparecer completamente. Surgir e cessar sem deixar rastros. O que é necessário para que isso aconteça pela primeira vez não é claro: foco, concentração, sincronia e possivelmente uma disposição profunda e poderosa. São os meus palpites. Independentemente disso, o que quer que seja necessário tende a ocorrer em retiros. Foi assim comigo, foi assim com as pessoas que eu conheço. Assim, vamos falar sobre como fazer um retiro.

Tu podes ir a um centro de retiros ou realizar um por conta própria em casa ou em algum outro lugar. Se optares pela primeira alternativa, haverão regras a serem seguidas e uma agenda a ser mantida. Se escolheres a segunda opção, deverás criar uma agenda própria e mantê-la. Em um centro, haverão pessoas cozinhando tua comida, além de várias outras fazendo o mesmo que ti (isto é, praticando) e lembrando-te de manter a disciplina. Se estiveres em um retiro pessoal, terás o benefício da solidão – o que pode gerar um foco poderoso e uma concentração mais profunda; por outro lado, terás que preparar tua própria comida e manter a motivação por conta própria. Em ambos os casos, o importante será manter uma rotina simples. Os dois tipos de retiro têm suas vantagens e desvantagens, mas o importante é ter a mesma atitude de trabalhar duro e de forma independente. Não te deixes levar por devaneios! Presta atenção a cada pedacinho de segundo. Pratica, mesmo quando não conseguires mais ver o propósito de praticar.

Devo mencionar que as minhas expectativas são altamente influenciadas pela tradição do Venerável Mahasi Sayadaw e das tradições próximas ao seu estilo de prática. Este estilo implica engajamento em uma prática contínua, momento-a-momento e ininterrupta durante todo o tempo em que você estiver acordado. Desde antes de abrir os olhos na cama pela manhã, até adormecer de noite; e isso não é brincadeira. Se você não ficar eventualmente afetado ou até mesmo neurótico com relação ao fato de não estar se esforçando o bastante para manter a atenção momento-a-momento, então você provavelmente não esta. Sempre escutamos dizer como práticas de insight necessitam de um esforço equilibrado e até mesmo de tranquilidade. No entanto, vários de meus amigos que se tornaram arahants (i.e. pessoas que alcançaram o último nível do despertar) estão absolutamente convencidos de que 99% dos praticantes erram na direção do esforço deficiente. Se você está convencido de que em verdade está com o 1% restante, então este texto não é para você.

Esta tradição enfatiza a importância de utilizar cada minuto do dia para a prática, alternando entre períodos de foco intenso na prática formal e períodos de atenção constante ao descanso ou qualquer outra atividade presente (como um banho, refeição ou a uma hora de trabalho diário comum em vários centros). É claro que existem tradições que fazem retiros em um estilo mais relaxado, mas isso são escolhas. De minha parte, sei que dar muito duro funcionou. Excessivo? Exagerado? Perigoso? Possivelmente, mas experimenta ver por ti mesmo como te sentes ao sair de mais um retiro sem ter alcançado absolutamente nada em termos de progresso do insight e pensando em como poderias ter te aplicado mais.

Dissemos o bastante à guisa de introdução. Falemos agora sobre o que é necessário para adentrar na correnteza.

#1 Começa a acreditar que você pode

Esse item é absolutamente fundamental.  Faça o que fizeres em tua vida, tem certeza de que se trata de um objetivo possível. Estás cético? Com dúvidas? Por quê, se outros já conseguiram? Conversa com essas pessoas. Existem várias delas por aí e dificilmente alguém se torna professor sem ter alcançado ao menos o 1º Caminho. Não conhece ninguém? Absolutamente ninguém? Já tentou no teu centro de meditação ou grupo de prática mais próximo? Já buscou na internet? Dharma Overground, Kenneth Folk's Dharma, etc. Independentemente de onde for, conversa com pessoas até entenderes e aceitares que o despertar e a iluminação espiritual são coisas reais que fazem parte da vida cotidiana de muitas pessoas. Não é nada de outro mundo.

Isso é importante para que não compartimentalizes tuas expectativas acerca do despertar e as dissocie de tua experiência atual e presente de estares vivo aqui e agora. Não coloque a iluminação naquela categoria mental de coisas fantásticas que irão despencar magicamente do céu algum dia. Este é um hábito difícil de não criar e, uma vez estabelecido, é difícil de abandonar. Passei nove anos no caminho, vários deles como um monge, e ainda me sabotava com este tipo de hábito. Tu também tens/tiveste esse problema? Te pegas em devaneios, imaginando a iluminação espiritual acontecendo como imaginas ganhar na loteria? Sê honesto e fica atento. É extremamente enfraquecedor e desestimulante imaginar que o despertar é algo que pode existir apenas em tuas fantasias e em um mundo possível em algum momento do futuro. Começa a buscar por ele aqui e agora, ao teu redor e através de ti. Mas como podes fazer isso mesmo? É simples:

#2 Segue as instruções do retiro como se tua vida dependesse disso

Parece dramático, mas seguir as instruções é a parte mais importante de qualquer retiro. Estás lá apenas para fazer os exercícios que aprendeu com o professor e nada mais, nada menos.

Na tradição Mahasi, e na maior parte da tradição Theravada ao redor do mundo, a prática de insight significa apenas prestar atenção a qualquer uma das três características que podem ser encontradas em qualquer instância da experiência. Elas são as características da impermanência (fluidez, transitoriedade), sofrimento (tensão fundamental, desconforto) e não-eu (o fato de que não há ninguém que controla a experiência, sendo que ela apenas ocorre por si).

Daniel Ingram coloca grande ênfase neste ponto e eu me beneficiei disso. Eu irei me contradizer mais adiante, mas por hora, se você for utilizar a prática de notação (ensinada pelo Ven. Mahasi Sayadaw), parte do pressuposto de que ver algum aspecto das três características é o único modo de você chegar a algum lugar. Faz isso e lembra que, de modo geral, você deve:

#3 Coloca mais esforço do que achas que é preciso

Pode parecer anti-natural trabalhar tão duro, mas o progresso do insight pode ser bem anti-natural. Será que trabalhar com tanta intensidade poderia atrapalhar? Improvável! A entrada na correnteza é um tiro no escuro e o teu destino é errar várias vezes até acertares. (Até tua mente acertares o ritmo e descobrir como sincronizar no tempo certo - e desaparecer no tempo certo). É um processo de tentativa e erro que faz parte de um aprendizado natural. Tu não podes forçar isso, mas pode te forçares a continuar tentando. Cada momento praticando contribui para este aprendizado, portanto:

#4 Continua praticando e não para

Não vacila. Nem por um segundo. E não permite nada que irá incentivá-lo a vacilar em seguida. O universo está contido em um grão de areia. O universo inteiro está presente nesse momento. Se trabalhares assim, com essa intensidade, mesmo que não alcances a correnteza irá alcançar insights que irão beneficiar seriamente a tua vida. Trabalha com o tipo de imediatez que foca no que está presente aqui agora e que realça teu engajamento com esse momento presente. E se escorregares e perceberes que não consegue retornar ao ponto alto de tua prática:

#5 Percebe os momentos no qual tornas as coisas mais difíceis para ti mesmo

Dualidades artificiais e problemas sem sentido. Devo fazer isso, ou aquilo? Isso vai funcionar, ou vai apenas atrapalhar? A falta de foco no sujeito ou no objeto fazem coisas que não são realmente contraditórias parecerem assim, e à medida em que você entra neste loop começa a enxergar problemas que são apenas criações de sua mente. O terceiro estágio do insight (conhecimento das três características) e os estágios finais da noite escura (#5-9 na tabela dos vipassanañanas) tendem a potencializar esta tendência. O modo de lidar com esses problemas é continuar praticando da melhor maneira que puder. Algumas vezes absolutamente nada funciona. Então nota o sofrimento, nota a ansiedade, nota a confusão, nota o descontentamento, nota a inquietação, etc. Familiariza-te com os meios pelos quais a tua mente esperneia e tenta evitar o sofrimento e tenta te sentir à vontade com isso. Sofrimento é uma parte do nosso mundo e não deve ser considerado um obstáculo à prática. Apenas presta atenção a ele como a qualquer outro sentimento ou objeto. O que é a experiência do sofrimento? Quem sofre? São questões de importância real. Nada fora desse momento vai fornecer essa resposta particular para ti, porque na verdade estás olhando para compreender algo a respeito desse momento mesmo. Sofrimento é frequentemente uma indicação clara do que deve ser observado para que entendas isso. Assim, os momentos difíceis são excelentes oportunidades para internalizar essa compreensão necessária. Aceita-os quando surgirem e faz o melhor deles. Quanto mais confortável estiveres em seu próprio sofrimento, mais claramente verás com o que tem de lidar, e saber isso é fundamental para:

#6 Descobrir por ti mesmo

Se você estiver escalando uma montanha e o caminho estiver bloqueado é um problema teu descobrir um outro caminho e continuar subindo. É entre ti e a montanha; entre ti e o mundo. Pode ser difícil perceber isso a princípio, mas o momento chega no qual todos percebem que tem de ser desse modo. A realidade não é algo que está acontecendo em uma historinha em algum outro lugar, mas aqui mesmo e agora. Tu não precisas de um intermediário para perceber isso, pois é algo que nenhuma técnica, nenhum ensinamento, nenhum professor, não importa o quão útil, pode fazer por você. Quando a relevância de todos estes auxílios se desfaz, o que resta é a parte que está tendo a experiência. Portanto, vá se acostumando com continuar por conta própria. Esse é um ponto fundamental e eu suspeito que muitas pessoas não conseguem alcançar aquilo que são capazes por pura falta de espírito de aventura e de coragem. Não tenha medo ! E...

#7 Aprende a se divertir!

Eu sei o quão fora de lugar isso parece depois de todo o discurso sobre trabalhar duro e sem pausas. Mas é isso mesmo: não esquece de se divertir! As coisas mudam, fluem, rolam aos trancos e barrancos, mesmo porque estás trabalhando com tudo que tens. Não deixe de aproveitar o que estás fazendo, pois estás fazendo isso para ti mesmo. Ir para um retiro é um meio de livrar-se de sofrimento desnecessário e tornar tua vida melhor para ti mesmo; então, se não há uma parte de ti que aprecia isso, ou essa compreensão, deve haver algo faltando. De fato, haverão momentos nos quais duvidarás profundamente de que qualquer pessoa, principalmente você, pode beneficiar-se deste processo de alguma maneira. Esses momentos são uma boa oportunidade para permanecer apenas com a experiência visceral de como as coisas são. Eles costumam não durar muito, e se assim desejares, poderás começar a divertir novamente muito em breve; e eu recomendo que faça isso.

O caminho da prática é um território amplo, rico e variado. Poderás esquecer de teu propósito e direção várias vezes. Acertar os ponteiros e dar o próximo passo adiante envolverá um processo de tentativa e erro em níveis bem primários e básicos. Tua mente poderá fazer coisas engraçadas, desconexas e inúteis. Esse é um efeito colateral natural de estar vivo e aprendendo coisas novas. Continua engajado com a realidade e aprende a ver o lado bom e mais suave das coisas. Fica à vontade com tuas mudanças de humor. Acostuma-te com necessidades conflituosas e sente em casa com toda as tentativas de mapear teu progresso, teorizar sobre meditação, prever o que irá acontecer, imaginar e criar expectativas; todas essas atividades intelectuais neuróticas irão acontecer independentemente de julgá-las úteis ou não. Essas coisas não são sinais de um regresso, então não desanima; toma-as como sinal de que não estás no controle ou que estás sem foco (ou do que quer que seja o vilão dessa vez). Expectativas ou tentativas de prever o próximo passo, bem como outras dificuldades, são apenas parte do processo que tua mente tem que atravessar e parte da mesma realidade que estás tentando investigar. Não as tome como obstáculos, pois é a compreensão da natureza desses fenômenos que constituem o insight que buscamos. Assim como todas as outras sensações, elas são dependentes de causas e condições, são vazias e autônomas. Manter um senso de humor com relação às surpresas do caminho bem como um espírito de curiosidade podem te levar longe quando as coisas ficarem tediosas e tiveres gastado todas as suas opções.

Haverá um momento na prática (depois da noite escura - fundo no território da equanimidade com relação às formações) no qual não será mais necessário prestar atenção às três características. Na verdade, não será necessário fazer mais nada. Tudo ocorrerá por conta própria. Se chegares até esse ponto, apenas continua com as coisas como elas acontecem, e continua praticando o melhor que puder. Daqui para frente estás por conta própria - não que você já não estivesse...

Mensagens para tomar nota durante um retiro:
  • 1 – Não se perca em lama mental
  • 2 - Quando em dúvida ou conflito: apenas "note" e aceite a dor
  • 3 – Se você tem alguma pergunta a resposta está nas 3 características
  • 4 – Fique atento durante as transições entre atividades
  • 5 – "Análise" não é o mesmo que prática
  • 6 – Pratique a todo momento enquanto estiver acordado!
  • 7 – Mantenha uma rotina da prática!
  • 8 – Lembre-se do quanto este momento é valioso e o quanto a Noite Escura da Alma é ruim
  • 9 – Quando estiver sozinho, dê duro do mesmo modo; isso é para você próprio

Exemplo de agenda a ser seguida:
  • 4:30 - Acordar
  • 12:00 - Almoço, Banho, etc.
  • 17:00 - Chá da tarde
  • 22:00 - Dormir


Durante todo restante do tempo faz rounds de meditação andando e meditação sentada com intervalos de 15/20 minutos entre cada round. Começa com 30 minutos para cada e vá aumentando 5 minutos por dia. No quarto dia, sobe para 1h andando / 1h sentado.

Exemplo do primeiro dia:
30 minutos meditação andando
30 meditação sentada
20 minutos de intervalo
E repete durante todo o dia, parando apenas para café, almoço e dormir e banho.
Exemplo do quarto dia:

1 hora de meditação andando
1 hora de meditação sentada
15/20 minutos de intervalo
E repete durante todo o dia, parando apenas para café, almoço e dormir e banho.





Texto original de Tarin Grego. Traduzido e adaptado.

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