Obstáculos do Dharma no Ocidente

Nós fazemos parte de uma cultura cujos valores e visões de mundo são ditados por mecanismos semelhantes aos que ditam o preço da uma commodity no mercado internacional. A decadência da principal tradição espiritual do ocidente deixou um vácuo no coração e na mente do homem moderno; mas Deus claramente não morreu. Ele apenas foi substituído pelo consumismo e transformado em um produto nas prateleiras. Nesta mesma prateleira – em um lugar de destaque e em uma embalagem bem bacana – é onde o Dharma Buddhista se encontra atualmente.

O que tem acontecido com o Dharma no ocidente é por vezes maravilhoso, por vez lamentável. Retirado de sua cultura de origem ele está – em um bom dia – transformando-se em um caminho secular integrado à vida no século XXI, repleto de práticas, técnicas e ensinamentos transformadores que podem ser acessadas e praticadas por quase qualquer um no planeta. Em um dia ruim, ele é diluído e vendido sob diferentes formas e embalagens para uma cultura perversa capaz de engolir qualquer coisa para excretar mais e mais dinheiro. 

Falarei um pouco sobre problemas que surgem ao aplicar as técnicas meditativas fora do contexto tradicional; problemas que surgem ao tentar ensinar o Dharma dentro de um contexto “tradicional” (porém não-monástico) de um modo mais abrangente e acessível; e algumas armadilhas e padrões comuns que encontramos ao tentar acessar uma tradição espiritual nos dias de hoje. Meu objetivo não é apresentar uma visão dogmática sobre o Dharma e sobre a meditação, mas apontar para algumas distorções e dificuldades que estão surgindo neste processo de transmissão e estabelecimento de uma nova tradição contemplativa em nossa cultura. Quem sabe fazendo isso não poderemos direcionar as coisas para dias melhores e integrações mais completas e saudáveis?

1.
Apesar dos inúmero problemas metodológicos das pesquisas atuais sobre os efeitos de meditação no cérebro (a maior parte nem ao menos chega a um consenso sobre o que querem dizer com o termo “meditação” ou “atenção plena”, nem conseguem estipular critérios confiáveis para classificar e categorizar os participantes dos estudos), há um consenso geral de que meditação é benéfica para várias condições de saúde e distúrbios psicológicos – e.g. stress pós traumático, doenças degenerativas, problemas de dor crônica, etc – e promove uma “melhor qualidade de vida em geral”. 

Dito isso, apresentar e vender as técnicas de meditação como uma ferramenta de produtividade ou bem-estar é, na minha opinião, algo extremamente complicado. O primeiro motivo para isso é que a meditação não tem relação alguma com produtividade e ela certamente não foi projetada ou concebida com esta finalidade. Na verdade, como veremos, produtividade é uma clara subversão objetivo principal das técnicas e práticas meditativas em seu contexto original. Com relação ao bem-estar, a meditação pode sim ser uma fonte de estados extremamente positivos e saudáveis. Isso acontece, no entanto, apenas depois de um longo período de treinamento. Workshops e professores que oferecem técnicas capazes de revolucionar a qualidade de vida de alguém em pouco tempo estão deliberadamente, ou inconscientemente, mentindo. A prática de Samatha – tranquilidade, concentração – exige tempo, dedicação e professores com experiência de retiros (eis aqui um critério necessário, porém não suficiente para avaliar um “professor”: ele tem experiência de retiros prolongados orientado por outros professores autorizados dentro de uma tradição?).

Um segundo motivo para ver com reserva este uso espúrio das técnicas meditativas tem a ver, como vimos acima, com os objetivo da técnica. Uma vez que removemos a prática de seu contexto original e passamos a falar de seus objetivos apenas como bem-estar, auto-conhecimento e produtividade, perdemos de vista o fato de que elas foram originalmente concebidas e utilizadas para algo muito diferente – isto é, para acessar um tipo de experiência que transcende e vai além da nossa percepção ordinária da realidade, e que transforma o nosso modo de perceber e viver. Para utilizar de uma analogia, seria algo como utilizar um carro de fórmula 1 para ir comprar pão na padaria da esquina. Temos uma super ferramenta completamente sub-utilizada. 

2.
As técnicas em conjunto com os ensinamentos são aquilo que devemos buscar. Como o Buddha tentou deixar claro desde o começo, não existe sabedoria sem meditação, nem meditação sem sabedoria. Ainda sim, o problema oposto ao citado acima também é extremamente comum no ocidente e fonte de muita frustração para professores e alunos. Inúmeras pessoas passam anos a fio estudando o Dharma sem nunca sentar-se em meditação, nem fazer retiros prolongados de prática. A situação é tal que a impressão que tenho é que muitos procuram o buddhismo apenas para trocar a dor do banco da igreja pela dor do zafu, a fé em Cristo pela fé em Buddha, e para passar o resto da vida gozando de um prazer ilusório de terem uma religião “cool” (uma religião sem Deus e em aparente consonância com a ciência moderna).

Frequentar grupos de estudos, satsanghas, dhammatalks, palestras, é sem dúvida algo bom. Mas fazer isso sem dedicar-se também à prática da meditação é uma absoluta perda de tempo! De um ponto de vista da finalidade do buddhisto estudar sem praticar é como querer ir do Rio a São Paulo montado no lombo de uma tartaruga! Pior do que não conhecer a teoria por trás da prática é conhece-la apenas para guarda-la em uma gaveta mental qualquer ou transforma-la em objeto de admiração. Como se “uma ideia a mais” na mente fizesse alguma diferença!

Me parece que em um esforço de tornar o Dharma mais acessível para as pessoas em geral, alguns professores esqueceram de mencionar que eles tem que fazer algum trabalho! Despertar envolve esforço considerável e uma certa continuidade de prática, mas é algo totalmente factível. Na Ásia, a maior parte das pessoas leva 1 ou 2 retiros de 20 dias para conquistar os primeiros estágios do insight. No Brasil ainda temos poucas oportunidades de retiro de uma duração razoável, enquanto workshops e miniretiros de fim de semana abundam. Infelizmente acordar demora um pouco mais do que o espaço de tempo de sexta para domingo, e pelo o menos alguns retiros de 10 – 20 dias costumam ser necessários.

3.
Abaixo irei listar (de modo não-exaustivo) algumas outras armadilhas com as quais podemos nos deparar quando exploramos qualquer tradição espiritual. Nenhum de nós está totalmente imune a elas (me incluo aqui) e o melhor remédio é estar sempre atento. Digo que são armadilhas pois desviam o propósito da prática, ou representam “cantos cegos” de nossa visão. Como parte de uma prática mais saudável, nada melhor do que levar luz ao que está obscurecido.

i. Narcisismo – Yoga ou meditação são caminhos para relaxar as forças do ego (apego, aversão) e investigar o corpo e a mente. Quando transformamos estas práticas em um meio de ficar corpo sarado e flexível, ou para ser percebido como alguém diferente, especial, estamos transformando uma prática espiritual em uma forma de narcisismo. Definitivamente esse não é o objetivo da prática. 
ii. Turismo – Em uma grande cidade, não seria inconcebível escutar alguém perguntar-se “Devo ir ver a palestra de um guru indiano no sábado, ou participar de uma meditação Zen no domingo? Talvez participar daquela dança sufi na quinta a noite, logo depois da aula de yoga. Quem sabe um ritual shamânico no feriado?” Frequentar compulsivamente workshops, satsanghas, comprar livros, ir atrás de professores, etc sem jamais comprometer com uma tradição, uma técnica, um caminho de prática é o mesmo que fazer turismo. É estar constantemente apenas com os dedinhos na água sem jamais mergulhar. Quanto livros e workshops realmente precisamos até sermos capazes de apenas sentar em silêncio para observar o momento presente? 
iii. Idolatria – Ajoelhar aos pés de monges, gurus, estátuas e professores – e tratar estas figuras mais como astros de Hollywood do que amigos no caminho – sem perceber que as respostas não podem ser encontradas fora de cada um é o mesmo que idolatria.  
iv. Ilusão –  É viver a espiritualidade como uma ilusão confortável de que se formos um bom menino ou menina iremos ser recompensado com uma passagem só de ida para o reino dos seres iluminados, onde todos vivem em êxtase divino perpetuo brincando com super poderes psíquicos e sem problemas mundanos, como contas a pagar, relacionamentos difíceis, doenças, velhice e morte. 
v. Incredulidade – A única consequência possível das ideias bizarras que povoam o imaginário coletivo, é tratar o despertar como uma ideia absolutamente distante da realidade, e que existe apenas em nossas fantasias. Poucos praticam confiantes de que despertar é realmente possível e com conhecimento de que existe uma longa tradição de monges e leigos que nos últimos 2600 anos realizaram as mesmas práticas simples, apenas seguindo instruções, e alcançaram os mesmos resultados. 
vi. Distração – É o espírito de nossa época que pouco contribui no caminho. Vivemos em uma cultura constantemente distraída entre uma conversa de whatsapp e outra, envolta em pensamentos sobre o que estará acontecendo no facebook ou no netflix, enquanto momento presente se esvair e a suposta sabedoria universal é transformada em mera “informação” que não surtirá efeito algum. Os padrões e hábitos mentais se perpetuam bem como a ignorância; e todos seguem suas vidas ávidos pelas curtidas da próxima postagem no Instagram; pelo próxima série de televisão, pela próxima viagem, pelo próximo relacionamento, pelo próximo “drops” de sabedoria espiritual a ser compartilhado com o amigos e estranhos. 
vii. Vício – Como bem colocou um psicólogo e professor de meditação: nós vivemos em uma cultura de viciados. Isso aparece de modo mais evidente para quem está na sarjeta consumindo crack, e menos clara para os vegetarianos que sentam-se em meditação todos os dias. O mesmo padrão, no entanto, existe em ambos. Tudo que é criado em nosso mundo é pensado para estimular o desejo, induzir à distração e criar um senso de satisfação imediato e efêmero – exatamente como uma droga. 

Depois de 30+ anos neste tipo de cultura, não é de admirar que a maior parte das pessoas levanta pela manhã sentindo que vale absolutamente nada.

Ignorar todas estas armadilhar e dificuldades não vai elimina-las. É como querer acabar com o racismo fingindo que ele não existe. Isso apenas nos mantém reféns da sombra e das partes de nós mesmos que não gostamos de ver. Uma tradição espiritual respeitável deve servir como ponte para uma abertura completa para a nossa experiência do momento presente em toda sua glória e imperfeição; e não para reforçar o nosso hábito de precisar de um barato imediato para sentir-se bem. Afinal, sentir-se bem não é o objetivo; nem ignorar as dores e hábitos tortuosos de nossas vidas. É despertando para esta dor e estes padrões que criamos a possibilidade de estar em paz com nós mesmos e com o mundo.

Por fim, concluo dizendo que não devemos subestimar os mecanismos que conseguiram transformar tudo que existe em nosso planeta em mercadorias nas prateleiras, em algo a mais para chamar de meu. O mesmo pode acontecer com a filosofia, com as tecnologias meditativas do buddhismo e qualquer forma de sabedoria. Estejam atentos, alertas e conscientes.  



Agosto de 2015

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