Existem muitas fantasias, especulações e ideias
distorcidas sobre pessoas despertas (páli: arahant;
sânscrito: arhat). Algumas vem dos
textos do Cânone Páli da tradição Buddhista Theravada e dos comentários ao Cânone, outras
das demais tradições buddhistas (e.g. Mahayana, Varjrayana, Terra Pura); e
outras ainda são meros frutos de nossa imaginação fértil. É importante ter
consciência de que mesmo as fontes tradicionais da tradição buddhista são, como
qualquer outra fonte, de qualidade mista e contém verdades, mas também
distorções.
Dogmas sobre o despertar tendem a obstruir e
obscurecer o desenvolvimento da sabedoria que surge a partir da percepção
direta realidade e da vida como ela é. A realização surge de tentar perceber como as
coisas são agora e não de imitar modelos afetivos, emocionais ou
comportamentais que nós inconscientemente associamos ao processo de despertar. É muito comum
ver pessoas utilizando um conjunto arbitrário e restritivo de regras de fala e
comportamento, que não tem nada a ver com o processo de despertar, como
parâmetro para avaliar a si próprio e outros. Neste artigo vamos entender
porque isso não faz sentido e vamos tentar focar a discussão onde se deve: na
percepção direta da realidade.
Alguns primeiros princípios
para enquadrar e abrir a discussão:
- #1 Despertar, realização, iluminação, surge a partir de uma prática de percepção direta da verdade das coisas, da realidade última, que todos podem realizar.
- #2 Tradições estabelecidas e professores de Dharma podem ajudar ou não neste processo.
- #3 Despertar não é propriedade exclusiva de nenhuma tradição, linhagem, religião ou professor; muito ao contrário, é algo acessível a todo seres humanos independentemente de sexo, cor, classe ou religião.
- #4 Em épocas, lugares e culturas distintas pessoas continuaram a descobrir e desenvolver uma mesma sabedoria, mesmo que com o auxílio de técnicas e conceitos diferentes.
- #5 Alguns discursos e conceitos podem ser mais precisos e direto do que outros.
- #6 Depois de despertar, essa realização não depende de condições específicas para existir no indivíduo.
- #6 Por oposição, o corpo e a mente do indivíduo desperto depende de condições específicas para sobreviver, tal como era anteriormente.
- #7 A realização de um indivíduo não surgiu com ele, nem foi criada por ele, mas já existia anteriormente como uma potência humana.
- #8 Qualquer noção ou ideia sobre como as leis da físicas e relações de causa e efeito deixam de valer para pessoas despertas são absolutamente falsas e absurdas.
- #9 Estar Desperto não implica ou pressupõe domínio sobre outras habilidades específicas da vida no mundo.
- #10 Estar Desperto não impõe nenhum tipo de restrição sobre pensamentos, palavras ou atos que um indivíduo pode manifestar. (Apesar de ter-se afirmado muitas vezes o contrário).
- #11 Dizendo de outro modo, pessoas despertas são capazes de fazer, falar, pensar e sentir como qualquer outra pessoa.
O básico sobre arahats:
- #12 Arahat é uma palavra em Páli que é soletrada de muitos modo (Arahat, Arahant) e que pode ser traduzida de muitos modos: Conquistador, Abençoado, Santo, etc.
- #13 Se tornar um Arahant é o objetivo do Buddhismo Theravada.
- #14 Se tornar um Arahant designa a perfeição do treinamento em sabedoria, o terceiro treinamento do caminho buddhista. (Sendo os outros dois virtude e concentração respectivamente)
- #15 Intitular-se um Arahant é o mesmo que admitir ter percebido uma verdade que está além de qualquer condição, sensação ou fenômenos específicos.
- #16 Dito de outro modo, o processo de identificação da mente com sensações ou processos, que normalmente dão origem a um "Eu", deixa de acontecer. Isso acontece pois todas os processos e sensações foram vistas pelo o que são: transitórios, vazios, luminosos e dependentes de causas e condições.
- #17 O Buddhismo Theravada estabelece quatro etapas no caminho do despertar. Eles são chamados de "Os 4 Caminhos".
- #18 Cada um dos 4 Caminhos leva, gradativamente, em direção à uma percepção mais completa da realidade.
- #19 São eles na ordem com os respectivos títulos: 1º Caminho - (Entrada na Correnteza) Sotapanna; 2º Caminho - Sakadagami; 3º Caminho - Anagami; 4º Caminho - Arahant.
- #20 Alguns textos descrevem a entrada na correnteza como provocando uma "visão do dharma" ou a "abertura do olho do dharma". Estes mesmo textos descrevem a conquista do nível de Arahant como a abertura do "olho da sabedoria".
Um arahat:
- #21 Percebeu de um modo direto e perceptivo - que é diferente de uma compreensão meramente intelectual ou conceitual - a não existência de um agente contínuo e separado, um observador, um centro da percepção, que é o locus do 'Eu'.
- #22 Reconhece as sensações que implicam estas coisas (descritas acima) como sendo apenas sensações surgindo e passando de acordo com causas e condições.
- #23 Não precisa trabalhar ou se esforçar para manter esta compreensão.
- #24 Sabe por experiência própria e em tempo real o que significam frases e conceitos como:
- "no pensamento há apenas o pensado; na visão, apenas o visto (...)"
- "luminosidade intrínseca"
- "o vazio de todos os fenômenos"
- "o nirnava é encontrado apenas no samsara"
- e toda uma série mais de metáforas poéticas e tentativas de descrição...
Eis alguns mitos incômodos
que violam os princípios descritos acima ou que apenas são falsos:
Pessoas despertas...
- #25 Não podem mentir.
- #26 Não podem ter relações sexuais.
- #27 Não podem usar drogas ou beber álcool.
- #28 Não podem dizer que estão despertas ou que são arahants.
- #29 Têm que ordenar-se em um mosteiro ou sangha buddhista em sete dias ou irão morrer.
- #30 Não podem conceber o pensamento "eu sou um arahant".
- #31 Não podem ter emoções como: irritação, ódio, inquietude, medo, orgulho, temor, desejos por estados profundos de concentração, cobiça, aversão, etc.
- #32 Não podem gostar de música ou dançar.
- #33 Amam florestas.
- #34 Não podem ter empregos e relacionamentos normais.
- #35 Não existem hoje em dia.
- #36 Tem que trabalhar para manter o entendimento que alcançaram o que lhes impossibilita de fazer muitas coisas.
- #37 Não entenderam completamente a natureza da realidade pois apenas boddhisattvas e praticantes do buddhismo X (E.g. Tibetano, Zen, Terra Pura, etc.) comprometeram-se com o bem de todos os seres e com a busca pela iluminação.
Conclusão
Muito do que é dito aqui está em franca
contradição com inúmeras
ideias do imaginário popular e com vários textos de
diferentes tradições buddhistas. No entanto, antes de pretender valer-se desses
textos para refutar o que é dito aqui, considere o seguinte: os textos tem inúmeras contradições e
incoerências! Eles foram escritos durante um longo período de tempo
(provavelmente centenas de anos) e isso depois de terem sido transmitidos
apenas oralmente por mais de 4 séculos por pessoas com cultura, origens, ideais e
níveis de compreensão distintos.
Existem centenas de pessoas despertas hoje capazes
de oferecer instruções, descrições e relatos verossímeis e culturalmente mais
próximos. Considere conversar com elas, ou ainda ler menos e praticar
mais, até alcançar
algum dos níveis mais altos do despertar.
Modelos que buscam explicar o despertar a partir de emoções, ações ou
pela presença ou ausência de certos desejos ou pensamentos, estão completamente
fora do alvo e tem pouco a ver com os fatos. As verdades compreendidas ao
despertar estão presentes em todos os fenômenos, incluindo aqueles que as
pessoas não gostam - ou preferem - não ver.
Para fazer jus às descrições tradicionais, é verdade que
entender como todas as sensações são partes transitórias de um campo de
experiência
- ao invés algo separado e permanente - provoca grandes mudanças no modo como
nos relacionamos com os fenômenos. Algumas destas mudanças trazem, de fato,
benefícios emocionais; porém estes benefícios
são
extremamente difíceis de mensurar e explicar, e a
abordagem tradicional - por vezes excessivamente dogmática - certamente não faz um
bom trabalho nesse sentido. Do mesmo modo, tentar eliminar certas emoções ou
desejos com o objetivo de despertar, ou acreditar que estar Desperto depende da
presença ou ausência de alguma emoção ou desejo, é um erro. O lugar correto para procurar é na observação da
impermanência de todas as sensações (incluindo as sensações que compõe
as emoções ou desejos que não gostamos) e na investigação da realidade, apenas
aparentemente estável
por detrás de cada fenômeno e experiência. Não se trata de algo
grandioso, rarefeito ou abstrato, mas de uma aceitação plena da condição
humana.
Mestres do Zen e do Tantra dizem estas coisas todo
o tempo; apenas, infelizmente, em estilo misterioso. Como um certo professor
brutalmente colocou: “Despertar naturalmente não significa transmutar-se em uma
manifestação higiênica e limitada de um super ego enrustido de uma mente
idealista e ingênua, mas sim repousa na percepção clara e imediata da plenitude
da vida, que inclui a vida emocional em toda sua glória, tragédia e
mundanidade”.
Existem certas histórias e ideias sobre o
Despertar que mais desmotivam e desencorajam os praticantes de meditação do que
o contrário. Estas histórias fazem o Despertar soar mais como prisão do que a liberdade que
buscamos; além de simplesmente não fazerem sentido, sendo apenas um aglomerado
arbitrário de ilusões neuróticas de
indivíduos que não percebem o próprio dogmatismo. Ao deparar-se com alguma
asserção sobre o que pessoas despertas / arahants podem ou não fazer: pense duas
vezes.
Um último ponto um pouco técnico sobre arahats que é debatido com frequência tem haver com o domínio dos Jhanas. A resposta é simples: Não, um arahat não precisa ter domínio dos Jhanas. A
dificuldade reside no fato de o termo Jhana ter sido utilizado nos textos
tradicionais para referir tanto aos 8 Jhanas de Samatha (estados de
concentração) quanto aos Jhanas de Vipassana (estágios do progresso do
insight). Os comentários posteriores então explicitaram a diferença, mas sem
preocupar-se em apontar para a confusão que havia nos textos originais. Assim,
se tomamos a palavra Jhana como significando apenas estados de concentração, um
arahat terá domínio deles apenas se tiver aprendido-os. Similarmente, alguém que domina os estados de concentração não necessariamente terá atravessado os Jhanas de Vipassana e
tornado-se um Arahant.
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